terça-feira, 1 de janeiro de 2008

Não gosto de palhaços.

Ponto e parágrafo.

Não é nada do outro mundo, não sou a primeira nem serei a última a tremer sempre que vejo um. Não é de sempre. Apesar de nunca ter rido como toda a gente quando via um, ria. Sempre achei que o afastar gradual dos palhaços fosse consequência da consciência que fui tendo do que era realmente ser palhaço. Por acaso, muito recentemente, descobri que o meu afastar dos palhaços coincide exactamente com a altura em que vi Limelight do Chaplin há quase dez anos, o que, bem vistas as coisas, confere uma grande dignidade a tudo isto. De qualquer das formas, afastei-me dos palhaços até ao ponto de não os suportar. Fazem rir por humilhação, dão literalmente o corpo ao manifesto, fazem rir de maneira parva quer estejam felizes, quer estejam tristes, quer estejam radiantes, quer estejam suicidas. Mais do que trágico, para mim, isto é sinistro.

Não gosto de palhaços.

Só há uma coisa que me repugna mais do que palhaços: o palhaço rico.

O palhaço rico é um estúpido. Um snob de roupas feias e brilhantes, um chapéu em biquinho pavoroso, com a cara pintada de branco, uma sinistra lágrima falsa pintada de preto e saltos altos como os monarcas absolutistas europeus do Barroco. Sapatos de pose, sapatos de trono, sapatos de quem não tem de fazer nenhum.

O palhaço rico é um idiota que trata os coitados dos palhaços pobres como o barrigudo industrial do séc. XIX trataria os operários. Pesquisem as ascendências desta palhaçada e aposto que vão lá parar.

O palhaço rico trata o palhaço pobre como nas famílias elite do Estado Novo os criados seriam tratados. Falam com autoridade e pertença: “onde é que está o teu irmão?”.

O palhaço pobre tem sempre um, dois, três irmãos. O palhaço rico é sempre filho único. Quando muito, um gémeo.

O palhaço rico trata os palhaços pobres como estúpidos e ignorantes (no que eles se tornam, admitamos, no momento em que o palhaço rico entra em cena).

O palhaço rico prepara tudo para o palhaço pobre fazer figura de urso, cair, virar-se contra o seu semelhante, encher-se de nódoas negras, beber veneno, apanhar uma pneumonia ou ficar a precisar de um grande banho. Se admitirmos que ele é mesmo pobre (e que não fosse) isto é um atentado contra dúzia e meia de direitos humanos. E nem vale a pena falar quando há um palhaço pobre criança em cena. Não vejo nada de divertido e educativo aqui. E nós (salvo seja) rimos.

O palhaço pobre é miserável, usa sapatos largos, roupas coçadas e grandes demais e tem sempre o cabelo descomposto. O palhaço pobre é inocente na ignorância e o filho da mãe do palhaço rico serve-se disso para se divertir a seu bel-prazer, criando perversamente as situações mais humilhantes, só para se rir um bocadinho. E nós (salvo seja) rimos das figuras que o palhaço pobre faz e aplaudimos (salvo seja) as construções retorcidas do palhaço rico.

O palhaço rico é a personificação dos palhaços que nós somos. E dos palhaços que queríamos ser, o que é ainda mais ridículo.

Como se não bastasse tudo isto o palhaço rico toca sempre clarinete ou saxofone. Toca sempre músicas de caixa de música, coisas dramáticas e/ou melancólicas, lágrimas de crocodilo para finalizar a actuação “ah, a vida é terrível e cruel, ah, o que nós fazemos para rir, ah, o que é rir, ah, vida miserável”. Não basta levar a casa abaixo com a humilhação demorada (e com requintes de malvadez, óbvio, ou não fazia rir), ainda tem de acabar criando uma sensação de mal-estar em toda a gente, culpando-os de terem rido.

Escrevam, anotem, registem o que vos digo. O palhaço rico é o diabo, é gente que não interessa a ninguém, é um alvo a abater, é um manipulador de que não precisamos.

Primeira produção do ano. Realmente. Acordei, liguei a TV, dei de caras com a repetição da festa da SIC no circo Cardinalli e logo os palhaços... Indignei-me. Deu nisso. Belo início de ano, hum?

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